quarta-feira, 17 de março de 2010

Joana a contragosto

MIRISOLA, Marcelo. Joana a contragosto. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005. 187p.

O livro de que falo hoje é, antes de mais nada, uma história de amor. Não o amor da segunda metade do século XIX, romântico, platônico, o qual nunca se efetiva por vias carnais, mas exclusivamente espirituais, vindo a se morrer por ele, ou até mesmo de vergonha, como em certa obra de Garret. Não, o amor que temos em Joana é contemporâneo, produto do terceiro milênio e, fosse para dar nome a este pequeno ensaio, o intitularia Amor em tempo de internete.

Resumindo: um escritor de quarenta anos, vivendo solitário em sua quitinete de marfim, em Sampa, recebe e-mail de uma pretensa escritora do Rio de Janeiro, que acabara de completar vinte e um anos de idade, dizendo ser ele seu escritor preferido, pedindo para analisar os escritos dela.

Está formado o jogo. Não somente o da literatura mas também o da sedução.

Joana é uma manipuladora, ou, como se diz na cultura hispânica, uma devoradora de homens. Ocorre que o narrador de Mirisola também é um manipulador típico somente que, desta vez, envolvido pelo amor, deixa-se ser manipulado, o que já nos é revelado no primeiro parágrafo da narrativa. Portanto, o antes predador passa a ser agora a própria caça, aquele que está para ser devorado.

Trepei com Joana cinco vezes e sem camisinha, o que me deixou orgulhoso e envaidecido — a princípio mais pela quantidade do que pela aproximação. Isso se eu não tivesse cometido a besteira de querer amá-la ao mesmo tempo. (p.9).

Porém, o que faz de Joana a contragosto um estimulante livro a ser lido não se trata da fabulação em si, mas do sempre intimista narrador de Mirisola, que se reveste de crueza absoluta diante do mundo administrado. Assim, nos dias de hoje, de relações instáveis, não podemos deixar de ver com certa hilaridade esse narrador bucólico, apaixonado, daqueles que planejam ansiosos o domingo, para, com mulher e filhos, comer macarronada na casa materna. Sim, porque o narrador pretende se casar com Joana, criar sua hipotética filha, a indiazinha que foi supostamente abortada com a pílula do dia seguinte, constituir uma família feliz e, talvez, criarem peixes salmonados em algum pacato município do interior. Contudo, por telefone¸ trocando aficção pela realidade, Joana lhe pede mil reais emprestados — “mas eu te pago, viu.” (p. 151).

Está formado o jogo de espelhos. O que vemos agora não são apenas os supostos gestos ingênuos do narrador mirisoliano, mas, sim, a forma como ele nos expõe ao nosso próprio mundo, ao nosso cotidiano, às tentativas estéreis, assumidas ou não, de se constituir uma célula familiar tradicional e nos afastarmos de tamanho mal moderno: a solidão. Todos nós, queiramos ou não, em um mundo globalizado, de capitalismo triunfante, somos produtos. Ainda mais, tratando-se dele: o corpo ou o amor, mercadoria exposta nas gôndolas do pós-moderno.

Nesse mundo comensal, repleto de convenções, o narrador de Mirisola tenta se encontrar, fincar raízes, estabelecer família. Porém, a adaptação não é mais possível. Assim, o corpo estranho é expelido, e renuncia. Em Mirisola, temos literatura de desencontro, inadaptação. “Aconteceu de Joana me conduzir porque eu não tinha para onde ir.” (p. 30).

Fosse pedida uma metáfora, diria que o narrador mirisoliano opta pelo jogo de azar, o opositor encontra-se com sorriso nos lábios e cartas marcadas nas mãos. Ou, talvez, um colorido e sedutor caça-níquel, do qual, pelas probabilidades, não se pode sair vitorioso, como não se sai vitorioso com o amor depositado em Joana: “Aposto sabendo que vou perder. Acerto deliberadamente o alvo errado e me desobrigo da credulidade… Oh, Deus, e creio!” (p. 116). Deste modo, a olhos vistos, o narrador de Mirisola nos expõe suas derrotas, a fragilidade que habita em si, por transferência, em todos nós.

E esse fracasso pessoal, de alguma maneira, me faz ajambrar qualquer coisa que somente me diz respeito, e que me trouxe a esse lugar nenhum – Joana maior que minha compreensão. A falta é o único dado que “exerço” ou é aquilo que sobrou desse escombro chamado literatura, do qual me alimento e me enveneno em seguida. Tem a liberdade… (p. 138).

Dentro da atual literatura brasileira, poucos autores têm demonstrado tamanha consistência em seus escritos quanto Mirisola, motivo que o qualifica entre os principais nomes de nossa literatura contemporânea. Em seus livros, o leitor encontrará sempre esse mesmo narrador baluarte da desesperança, o que dá uniformidade à sua obra, assim como ao romance Joana a contragosto, cuja voz narrativa amalgama e homogeneíza, de forma surpreendente, uma estrutura fragmentada.

Próximo ao final deste ensaio, faço uso de uma frase que encontro na dedicatória de O azul do filho morto[1], ao ser me dado de presente por uma amiga. Escreve assim a Patty: “As pessoas aparecem em nossas vidas por acaso, mas não é por acaso que elas permanecem”.

Quanto à Joana, concluo parodiando o próprio Mirisola: “E ela não voltou”.

Ass.: Colaborador Especial Márcio Callegaro.


[1] Em minha opinião, a obra-prima de Marcelo Mirisola. (Editora 34, 2002, 173p.)

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